Pelo direito ao amadorismo cinematográfico
Em uma cena de Luzes da Ribalta (1952) o personagem Calvero de Chaplin em conversa com a amiga Thereza (Claire Bloom), defende que somos todos amadores, pois não vivemos o bastante para sermos outra coisa. Tal como Calvero acredito nessa afirmação e no direito ao amadorismo não enxergando-o no sentido depreciativo do termo, enquanto ausência de profissionalismo em determinado ofício, nem mesmo como justificativa para um trabalho mal executado, mas sim considerando-o um exercício criativo, sem amarras ou conformação a um padrão, uma vez que a ausência do domínio de um ofício muitas vezes nos motiva a buscá-lo por um lado e por outro nos permite entre erros e acertos, alcançar gradativamente o aperfeiçoamento e amadurecimento profissional.
Iniciei com a menção ao personagem de Chaplin, pois o mesmo conduziu minha reflexão até Amador (1979) filme do genial cineasta polonês Krzysztof Kieślowski, sobre o qual quero tecer aqui algumas reflexões.
O ar nostálgico de Amador
A primeira câmera a gente nunca esquece, pois na grande maioria das vezes foi dela que surgiram nossos primeiros registros fílmicos, foi com ela que aprendemos a despertar nosso olhar diante do mundo que nos circunda e também por meio dela que em cada imagem enquadrada nossa percepção diante do visto foi aguçada.
Amador (Amator, 1979) é um filme essencial para todo cinéfilo, pois além de ser uma carta de amor aos amantes da sétima arte, trata-se de um convite a reflexão acerca do amadorismo no cinema, ao mesmo tempo em que é um passeio nostálgico pela gênese do fazer cinematográfico.
O personagem central Filip Mosz (Jerzy Oskar Stuhr) pode fazer-nos recordar do início de nossa cinefilia, período este que em nossa inocência e entusiasmo diante das imagens ficávamos sedentos em capturar cada momento vivenciando-o através da lente da câmera.
Filip era um simples operário satisfeito com a vida que levava até o cinema ‘perturbar’ essa tranquilidade modificando sua rotina familiar, bem como sua visão de mundo até então passiva diante da realidade. Tudo isso se inicia quando o operário decide fazer registros em vídeo de sua filha recém-nascida, passando posteriormente a produzir imagens em sua Super 8 para a empresa em que trabalha.
Contudo, na contramão de seu fascínio e de seu avanço no universo da sétima arte caminha sua vida familiar cada vez mais abalada pelo estreitamento da relação entre o operário/cineasta e sua câmera.
Em seu trabalho o cineasta amador ainda tem de lidar com um patrão que por financiar o filme se vê no direito de intervir na edição do mesmo tentando minar a autoria do diretor.
Para além da relação com o chefe, há ainda os demais leigos na sétima arte que compõem seu até então pequeno círculo social e que reagem cada qual a sua maneira diante das imagens produzidas por Filip.
Uma das mais belas reações é a do vizinho Pior (Marek Litewka) que após o falecimento da mãe pede a Filip para ver o filme que este havia feito e que se tornaria o último registro da mesma, Pior ressalta a importância do filme ao eternizar a vidas que já se foram.
Outro momento do filme que merece destaque ocorre durante um festival de cinema para novos talentos, no qual após a exibição dos filmes nomeados um dos jurados tece uma série de opiniões negativas sobre os trabalhos de todos selecionados alegando que nenhum deles é digno de ser premiado. Comparando filmes a TV ele ressalta o dever desta em nos mostrar as coisas, enquanto em caminho oposto está o ato amador de se fazer um filme, no qual esse dever desaparece dando certa liberdade neste processo de produção de imagens.
Contudo, tal liberdade, como ressalta o crítico em sua fala, não lhe dá o direito de crer que registrando o ordinário e as pessoas inseridas nele com suas preocupações o legitima enquanto um cineasta comprometido socialmente, pois de nada vale isso se não vem de uma experiência pessoal, correndo o risco de tornar-se um registro vazio de significado em uma mera compilação de imagens que não comunicam de fato.
O filme levanta outra questão delicada no que diz respeito à ética no registro da imagem do outro, pois se minha câmera ‘furta’ a imagem deste outro até que ponto a imagem torna-se uma exposição ao grotesco carregada de sensacionalismo e até que ponto sensibiliza o outro?
O patrão de Filip faz uma ressalva importante que nos leva a pensar quais seriam os limites da criação de imagens: Tudo é passível de ser filmado? Tudo deve ser filmado com esse compromisso com a verdade ou não? Até que ponto nosso cinema tem um papel social, comunica e faz sentido?
Recordei-me de um episódio verídico relatado por Zefirelli em sua autobiografia[1] sobre as filmagens de A terra treme (1948) de Luchino Visconti na aldeia de Aci Trezza na Itália, a qual foi escolhida como locação por Visconti que dispensou atores profissionais optando pelos moradores da ilha com o intuito de conferir mais realismo ao filme. Após lançado A terra treme não fez o sucesso esperado, mas modificou a realidade pacata de uma vila italiana, tornando-a centro de turismo soterrada pelo progresso que extinguiu o modesto modo de vida de seus habitantes.
Tal fato complementa a presente reflexão acerca do ato de fazer filmes e nossa responsabilidade sobre a vida dos outros, pois até que ponto o filme e a câmera podem beneficiar e modificar a história de pessoas como fez a cineasta Zana Briski no premiado documentário Nascidos em Bordéis (2004) ao apresentar a fotografia a crianças indianas, sem perspectiva de um futuro, dando-lhes esperança e abrindo oportunidades através da arte. E até que ponto pode tornar-se caótico para todos os envolvidos provocando acidentes, explorando vidas e devastando a natureza como ocorrido nas filmagens de Fitzcarraldo (1982) de Herzog na floresta Amazônica peruana?.
Considerando tais aspectos, faz-se necessário pensarmos em nosso dever em relação às escolhas que fazemos sem sair irresponsavelmente filmando e impondo nossa vontade egoísta de fazer um projeto cinematográfico.
Entre ganhos e perdas, Filip testemunha inconformado o fato de um dos filmes que produziu ter ocasionado a demissão de um funcionário veterano da fábrica, além de experimentar a dor de ser abandonado pela esposa e pelo melhor amigo, restando-lhe ao final apenas a companhia de sua câmera.
Amador é mais que um filme, é um exercício reflexivo sobre o ato de filmar, sobre a produção de imagens em sua gênese e ao mesmo tempo se desenha na história do cinema como uma crítica atemporal a esse cinema que não pensa.
É também um convite a reflexão sobre o que nos move nessa arte e até onde, em certos momentos, nossa devoção ao cinema nos deixou alijados daqueles que amamos.
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