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Contos – Ouro negro

Durante a minha juventude, um momento da minha vida me chamou muito a atenção.  Eu era ainda uma criança, deveria ter meus onze anos de idade e morava no arraial de Padre Faria, logo antes dele se tornar Vila Rica, em 1711.

Meu pai trabalhava na extração de ouro, naquela época. Lembro que era um ouro negro, como se estivesse coberto por uma camada de ferro e outras coisas que desconheço.

Meu pai nem sempre trabalhou com a extração de ouro.  Antes disso, ele trabalhava na terra, com cultivo, alguns animais e éramos felizes. Logo quando fiz onze anos, pessoas embandeiradas chegaram dizendo que poderíamos ser mais felizes se meu pai trabalhasse em algumas minas, que já eram bem comuns naquela época.

Meu pai era uma pessoa forte, de poucas palavras e uma força incrível!  Carregava pedras, derrubava árvores e segurava grandes animais sozinho. Apesar de ter ficado bastante relutante em relação à nova atividade, mesmo a contragosto e sem poder negar os benefícios que as demais pessoas da região estavam tendo no trabalho das minas,  ele seguiu esse novo caminho.

Ele sempre retornava tarde da noite para casa e saía muito cedo.  Isso quando retornava…  Muitas vezes, ficou dias e semanas sem retornar e, cada vez que voltava, parecia mais e mais calado, murmurando palavras sem sentido, com um olhar de que nunca me esquecerei, vazio…

Minha mãe, coitada, nada podia dizer.  Sempre a via chorando pelos cantos, rezando, em um antigo idioma que nunca me foi ensinado e eu observava aquilo tudo como se fosse um filme despretensioso.

Muitos anos se passaram daquela forma.  Minha mãe nos deixou.  Meus irmãos, um a um, foram se perdendo na vida, alguns morreram, outros seguiram a vida de minerador e outros, simplesmente, sumiram durante a noite.  Mas meu pai, não.  Ainda estava lá, na extração do ouro, com o mesmo olhar vazio, sem expressão e suas palavras se tornaram somente sussurros e lamentos indecifráveis.

Em algum momento da minha vida, éramos somente eu e meu pai, morando em nossa velha casa.  Após um longo período sozinho, uma noite qualquer de muito calor, vi, pela janela, meu pai retornando para casa, cansado, arrastando os pés, sem sequer conseguir tirá-los do chão.  Aquele som de algo se rastejando em minha direção me gerou um pavor tão grande e intenso, que corri sem pensar na direção dele, na intenção de que pudesse conseguir fazê-lo parar, de algum modo.

O meu espanto não pôde ser maior pois, ao me aproximar, confesso que caí no chão, em desespero e  lágrimas.  Eu amava meu pai, mas aquela figura cadavérica, que se arrastava, não era ele. Minhas pernas tremiam sem controle e eu não conseguia me levantar. A figura se aproximava cada vez mais de mim. Braços estendidos para a frente, como se aquela fosse a única maneira daquele corpo sem alma se mover.

Eu me arrastava no chão, tentando fugir de tudo aquilo, até que aquele ser conseguiu se aproximar e cair em cima de mim, sussurrando.  E, por um relance,  pude perceber que seus olhos já não estavam mais lá,  parecia terem sido comidos por bichos; seus dentes,  à mostra,  pareciam mais presas de uma fera; suas roupas rasgadas e sua pele  já não cobriam mais a carne e, sim, somente em algumas partes do corpo, o osso puro; além do cheiro de morte, incrivelmente podre, que  jamais pude sentir em nenhum animal morto que posso ter encontrado durante a minha vida.

Enquanto tentava fugir daquilo tudo, cara a cara com aquela figura cadavérica, boca aberta no meu rosto, senti, por um breve segundo, um brilho dentro daquela boca, da qual. durante a vida, saíram pouquíssimas palavras de que eu possa me lembrar.

Aquele brilho foi ficando maior à medida que eu tentava sair de baixo dele.  A lua estava enorme no céu e aquela luz azulada começava a se refletir em nós e aquele brilho cada vez maior, percebi que era uma pedra que começava a cair dele.

Hoje, tudo está em minha memória.  Em 1929, quando tive a oportunidade de ler o que Seabrook escreveu em Ilha da Magia e a sua  experiência com os três trabalhadores do campo,  consegui, talvez, tentar entender o que aconteceu comigo naquela noite, mas nada daquilo se compara ao que vivi nos idos da minha juventude.

Aquela pedra brilhante de ouro negro guardo comigo até hoje.

Ilustração: Alexandre King para o livro “Ilha da magia” – William Seabrook(1929)

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